História do CENTRO ESPÍRITA ISMAEL



Centro Espírita Ismael – Uma parte da sua história
(Capítulo extraído do livro “Os Jesus que eu conheci”. Autor César Reis)
MARIA GORDA NA CHUVA
Estranho homem. Pequenino, cabeça branca, jeito de índio, pele enrugada, curtida pelos anos. Estava sempre de terno, um incrível terno daqueles que, antigamente, chamávamos de “palha de seda”, uma cor indefinida que os brincalhões diziam “cor de burro quando foge”, assim meio cinza, meio marrom, tudo muito desbotado. Pior, ninguém sabia onde terminava tecido, onde começava cerzido. Todo dia Manuel Felix vestia aquele terno, “filho único”, com muita dignidade. Uma camisa de colarinho puído e uma gravatinha alaranjada, fininha, que lhe descia desde o pescoço até o cinto, daqueles cintos de lona que se usava no exército, com fivela de metal. Era de ver o índio velho, empertigado, às seis da manhã, descendo a ladeira da favela que se projetava lá embaixo, na Avenida Duque de Caxias, no final da Vila Militar. Ele atravessava a avenida larga com seus sapatos que, um dia, foram pretos. Agora, ruços, tinham dois buracos no solado, tampados com folhas de jornais e revistas. Eram sapatos maiores do que seus pés de maneira que, percebia-se, ele equilibrava-se dentro deles com dificuldade, aumentada com o avanço dos anos.
Nós não entendíamos porque Manuel seguia aquela rotina. Funcionário aposentado, durante muitos anos, exercera função de porteiro do Parque Depósito do Exército, no lado direito da estação de Magalhães Bastos, subúrbio do Rio de Janeiro. Por que trabalhar todos os dias se aquilo não lhe acrescentaria um tostão aos minguados proventos?
Era pragmático, no seu constante sorriso. “-É que o coronel é muito bom. Todos os dias ele manda servir um café com leite e um pão com manteiga aos funcionários, à tardinha. Muitos não aceitam. O coronel então autoriza que eu fique com as sobras. Então tenho umas garrafas térmicas e umas bolsas de lona. Quando termina o dia, levo tudo para os pobrezinhos da favela”.
O homem voltava com as bolsas cheias. Atravessava o viaduto e subia a ladeira, as pernas meio bambas, o peito arfante. Chegava feliz, olhos brilhando, sorriso na boca. Lá no alto o povo esperava. Mães, quase todas, com os meninos no colo, grandes barrigas, pés descalços, poucos dentes na boca. Sorriam e batiam palmas. Para muitas, possivelmente, o único alimento do dia.
Era o menor centro espírita do mundo, talvez. Uma saleta, cerca de dez metros quadrados. Três bancos de madeira tosca. Depois da porta, um banheiro modesto. Centro Espírita Ismael. Paradoxal: no maior país espírita do mundo, o menor centro espírita tem o nome de Ismael, nosso guardião espiritual!
Todos queriam ajudar, agilizando, às vezes atropelando desordenadamente. Manuel Félix, porém, era o líder. Sua autoridade sobre o grupo era natural. Ele tirava os pães das bolsas e arrumava-os um a um, com cuidado. Depois abria as garrafas térmicas e servia café com leite nas canecas de alumínio. A fila já estava formada, pela ordem de chegada. Não havia brigas. Manuel rezava o Pai Nosso que todos, contritos, repetiam. No final ele pedia em favor dos que nem ao menos um pão tinham para comer. Rezava ainda pelo coronel, chefe do Parque. Em pouco tempo o Centro estava em silêncio. Manuel, sozinho, varria a sala, lavava as canecas, limpava as garrafas térmicas, deixando tudo preparado para o dia seguinte.
Duas vezes por semana, havia reunião no Centro, à noite. Poucas pessoas, pois não cabia quase ninguém. Manuel fazia uma leitura de preparação, abria o Evangelho Segundo o Espiritismo e pedia a algum companheiro para comentar. Depois vinham as preces e o encerramento.
Aos domingos Manuel dirigia a campanha do quilo. Seus poucos colaboradores reuniam-se e saiam pelas ruas imensas, ao sol escaldante do subúrbio do Rio de Janeiro, ou, então, debaixo das chuvas torrenciais que provocavam perigosas enchentes. As pessoas conheciam o Manuel. Ele chegava, entregava um saquinho vazio com um carimbo em vermelho “CAMPANHA DO QUILO ISMAEL”, e recebia um outro saquinho com um quilo de farinha, ou de açúcar, ou de fubá. Alguns ofereciam mais: batatas, arroz, feijão, macarrão. Para Manuel era uma festa. As bolsas de lona se enchiam e ele continuava seus quilômetros, derreado, coluna torta, cansado, mas feliz. Depois subia a ladeira e separava as bolsas que seriam ofertadas aos amparados.
A distribuição era feita aos sábados, com um pequeno grupo de voluntários liderados por Manuel. Eram umas trinta famílias. Manuel fazia questão que todos comparecessem: pai, mãe, adolescentes, crianças. Havia também alguns idosos. Os voluntários organizavam as turmas. Manuel sempre dizia que assistência é tarefa de educação. As crianças pequenas trabalhavam com recortes, colagens, aprendiam a escovar os dentes, lavar as mãos, pentear os cabelos. Os adolescentes formavam grupos de arte, higiene, problemas de comportamento, bebida, sexo, fumo. As mulheres eram reunidas em gestantes, nutrizes, aprendiam tricô, bordado, higiene; os homens, quando apareciam, invariavelmente, eram orientados quanto a bebida e jogo. No meio de tudo, e sempre, evangelização. Achava interessante que não era catequese, Manuel nem pensava em conquistar adeptos para a Doutrina Espírita. Dizia que era um trabalho estritamente de caridade. Portanto era amor incondicional, nada seria exigido em troca.
Conseguimos com os motoristas dos ônibus que passavam pela Vila Militar, uma carona permanente para o Manuel. Naquele tempo não havia passe para idoso. Ele carregava duas bolsas de lona pesadas naquelas ruas intermináveis de Realengo, da Piraquara, de Magalhães Bastos.
Um dia Manuel voltou mais cedo do quartel. Macambuzio, olhos baixos, estranhei, porque estava acostumado a ver sua alegria. Reparei que a bolsa estava vazia.
-O comandante mudou. Agora chegou um outro coronel. Ele disse que não pode sair nada do quartel. Continua o café com leite dos funcionários, mas estou proibido de pegar as sobras.
E arrematava triste:
-O que vai ser agora dos nossos pobrezinhos?
Lá no alto do morro o povo esperava. Quando viram as bolsas vazias, quiseram saber o que aconteceu. Manuel explicou que o novo comandante precisava conhecer bem as coisas. Mais tarde, quem sabe, poderia dar o pão e o leite outra vez. Então, convidou as pessoas para rezarem o Pai Nosso e pediram muito em favor do coronel novo.
Passaram-se algumas semanas. Todos os dias Manuel ia ao quartel, como se nada houvesse acontecido, fazendo o seu expediente de graça. Mas o coronel não abria mão, não mudava as ordens. À tardinha Manuel chegava e o povo estava lá, de olho nas bolsas de lona. Manuel rezava o Pai Nosso, pedia pelo coronel e preparava as distribuições do sábado.
Numa quinta-feira choveu muito no subúrbio. Quando a noite caiu, a tempestade desceu com força. Logo os rios transbordaram e as ruas desapareceram embaixo da água. O comércio fechou. Estava tudo vazio, e escuro, quase nove horas da noite. Um jipão do exército, daqueles antigos, usados na segunda guerra mundial, de marca Dodge, que os soldados chamavam de Maria Gorda, porque era estreito no motor e largo na carroceria, tentava arremeter no meio do mar em que se transformou a Avenida Duque de Caxias. Mas a água no carburador provocou uma última tosse no motor, que morreu inapelavelmente. O motorista, desolado, desceu molhado até a alma, e tentava empurrar o carro pesadíssimo. Havia também um senhor de meia idade, com uma menina no colo. Febre, vômito, desespero. O homem molhava um pano na água da chuva e colocava na testa da menina, que parecia desmaiada. Aí apareceram uns meninos, descalços, sem camisa, uns sete ou oito. Gritaram para o motorista:
⁃ Deixa com a gente!
E começaram a empurrar a Maria Gorda, com água até a altura dos joelhos. Quatro meninos na parte de trás, dois de cada lado, um primeiro arranco e a Dodge começou a avançar. Lentamente, no meio da água escura, tudo escuro, porque faltava energia elétrica, o carro como que flutuava contra a corrente líquida. Os meninos se revezavam e não desistiam apesar do esforço enorme. Quando, lá pelo meio da Vila Militar, chegaram à porta do hospital da guarnição, o motorista virou o volante para a direita, o sentinela ouviu o grito do soldado e abriu a corrente. Um último arranco e a Maria Gorda entrou, parando bem ao lado do corpo da guarda. Um médico chegou correndo e tomou a menina nos braços. O homem olhou para os meninos que tremiam de frio e pediu que esperassem um pouco. Eles se abrigaram embaixo do telheiro. Alguns minutos depois chegava um lanche que comeram com avidez. Também vieram umas toalhas secas e camisetas, que vestiram com alegria. Quase uma hora se passou noite avançava, a chuva amainou. Os meninos preparavam-se para sair quando o homem de meia idade apareceu sorrindo e perguntou por que haviam feito aquilo, por que aquele sacrifício, arriscando-se a pegar doenças?
Um dos meninos disse que viram que o jipão era do Parque.
⁃ Ué, e o que tem isso? ⁃ perguntou o homem.
⁃ É que lá no Parque tem um coronel que é muito bom. O seu Manuel Félix todo dia reza para ele e a gente reza junto. E os meninos contaram tudo o que sabiam.
No dia seguinte, quando Manuel Félix chegou ao quartel, havia um recado para falar com o coronel. A partir daquele dia poderia levar os pães e o café com leite. A filha do coronel foi salva graças à ajuda dos meninos.
Manuel notou que agora havia mais pães e mais leite, e todos rezavam o Pai Nosso, davam graças a Deus e agradeciam ao coronel, à sua filha, ao motorista e …. à Maria Gorda.
Durante um bom tempo Manuel Felix e seu grupo continuaram suas tarefas da campanha do quilo. Os motoristas dos ônibus ficaram amigos, admiravam aquele homem pequenino, abnegado, corajoso, sempre sorridente. Um dia junto da esquina com a Vila Militar havia muita gente. Um acidente. Manuel, ao descer pela porta da frente, perdeu o equilíbrio, puxado para frente pelo peso das duas bolsas de lona. Caiu com toda a força, metendo a cabeça contra o meio-fio. O sangue desceu, a cabeça aberta que se podia ver lá dentro. Passando pela rua, corri, segurando-o junto ao peito, a multidão em volta. Ele sorria, com aqueles lábios finos, quase sem cor.
⁃ Imagine, meu amigo, pedi a Deus para viver servindo. Ele não só permitiu como ainda me deixa morrer no serviço do Bem.
Inclinou a cabeça e desencarnou rapidamente.
No dia seguinte, o cemitério de Ricardo de Albuquerque estava cheio de gente. Toda a favela do Fumacê estava lá. As pessoas choravam:
– Que vai ser de nós?
– Era o nosso paizinho!
Uma grande representação do Parque do Exército estava presente. As pessoas comentavam. Muitos vizinhos que ajudavam na campanha do quilo compareceram. Muitos companheiros do movimento espírita. Eu olhava espantado tanta gente, pensava no homem humilde, no porteiro, não aposentado, terno surrado, os sapatos com jornal, um campeão da caridade.
Ceslau Limeira, um amigo querido, excelente trabalhador vinculado a inúmeras ações caritativas, tomou a palavra e disse que estávamos nos despedindo de um homem de bem ainda incomum na face da Terra. Não importam os títulos, os diplomas, as posições sociais. Importa a maneira como se vive. Tomou então O Livro dos Espíritos, questão 918 e leu:
“O verdadeiro homem de bem é o que pratica a lei de justiça, amor e caridade na sua maior pureza.Se interroga a própria consciência sobre os atos que praticou, perguntará se não violou essa lei, se não fez o mal, se fez todo o bem que podia, se ninguém tem motivos para se queixar dele, enfim, se fez aos outros tudo quanto queria que os outros lhe fizessem.
Imbuído do sentimento de caridade e de amor ao próximo, faz o bem pelo bem, sem esperar recompensa, e sacrifica seus interesses à justiça.
É bondoso, humanitário e benevolente para com todos porque vê irmãos em todos os homens sem distinção de raças nem de crenças.
Se Deus lhe concedeu o poder e riqueza, considera essas coisas como um depósito que deve usar para o bem. E disso não se envaidece, por saber que Deus, que lhe deu tudo isso, também poderá retirá-los.
Se a ordem social colocou outros homens sob a sua dependência, trata-os com bondade e benevolência, porque são seus iguais perante Deus. Usa da sua autoridade para lhes levantar o moral e não para os esmagar com seu orgulho.
É indulgente para com as fraquezas alheias, porque sabe que ele mesmo precisa da indulgência dos outros e se lembra destas palavras do Cristo: Aquele que estiver sem pecado, atire a primeira pedra.
Não é vingativo: a exemplo de Jesus, perdoa as ofensas para só se lembrar dos benefícios, pois sabe que será perdoado na medida em que houver perdoado.
Respeita, enfim, em seus semelhantes, todos os direitos que as leis da Natureza lhes concedem, bem como gostaria que respeitassem os seus.”
No silêncio que seguiu, ouvi uma voz que repetia:
⁃ Um campeão da caridade, um campeão da caridade!
Olhei para o lado. Entre a multidão que se comprimia, percebi o homem alourado, cabelos já embranquecendo, fardado. Era o comandante, o coronel.
Ele aproximou-se do modesto caixão, colocou a mão sob as mãos cruzadas do corpo de Manuel Félix e repetiu:
⁃ Um campeão da caridade!
Rolou-lhe uma lágrima por trás do aro dos óculos. Então eu li no peito a sua identificação: Coronel Jesus.
Junto à cova modesta, enquanto muitos choravam, o Coronel Jesus levantou a voz e disse:
⁃ Este homem passou a vida servindo e orando por gente que nem conhecia. Vamos todos juntos agora rezar por ele.
E começou o Pai Nosso acompanhado por toda a multidão. Acho que Manuel Félix sorria feliz com o Pai Nosso do coronel chamado Jesus.
Capítulo extraído do livro OS JESUS QUE EU CONHECI, de autoria de Cesar Reis.